veja -03/05/2020 16:09
A pandemia se tornou uma cortina de fumaça para o avanço do
desmatamento na Amazônia. Com os olhos do Brasil — e do mundo — voltados para a
crise do coronavírus, madeireiros, garimpeiros e grileiros multiplicaram ações
criminosas, aproveitando-se do momento para avançar sobre a floresta com
motosserras e retroescavadeiras.
Os alertas de áreas devastadas bateram o recorde no primeiro
trimestre deste ano, totalizando 796 quilômetros quadrados, o que representa um
aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019, segundo o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Informações preliminares mostram que
aumentou ainda mais o ritmo de estragos entre março e abril, justamente quando
boa parte do Brasil entrou em quarentena.
Enquanto a supressão da mata segue em ritmo acelerado, as
ações de fiscalização e os autos de infração vêm caindo. Desmoralizado desde o
ano passado pelo discurso de um governo que fala em incentivar a exploração em
áreas protegidas, o Ibama sofreu um baque adicional com a Covid-19. Calcula-se
que quase um terço do efetivo de seus profissionais de campo tenha sido
afastado por pertencer a grupos de risco.
Se não bastasse, as equipes que continuam em ação vêm
encontrando dificuldades para atuar em certas regiões, como o Norte do país,
porque algumas prefeituras determinaram que elas devem passar por um período de
quarentena. O pretexto é de que isso evitaria trazer de fora para dentro a
doença. Um completo absurdo, é claro, pois acaba com o efeito surpresa de quem
está lá para fazer um flagrante.
“Seria importante que vocês reavaliassem essa conduta (…).
Talvez esperar passar esse período de pandemia”, argumentou o prefeito de
Uruará, Gilson Brandão, em áudio obtido por VEJA, no último dia 20, a fiscais
do Ibama, que haviam determinado a saída de invasores e a retirada de gado da
terra indígena de Cachoeira Seca, no interior do Pará.
O estado foi palco de um caso que exemplifica bem a situação
atual de descalabro. No início de abril, uma equipe do Ibama, com o apoio da
Força Nacional, realizou uma megaoperação em reservas indígenas no sul do Pará
— área onde o sistema identificou o maior território derrubado da floresta.
Orientados por indígenas, os agentes flagraram, ao longo de duas semanas de
investigação, serrarias, pontes e aeroportos clandestinos no meio da mata que
deveria ser fechada, conforme relatório interno obtido por VEJA.
Escondidos com galhos e folhas de árvores para escapar do radar dos helicópteros foram encontrados também tratores, galões de combustível e dezenas de armas. Depois, os fiscais incendiaram cerca de setenta equipamentos dos invasores, conforme manda a lei no caso de impossibilidade de realizar o transporte e a apreensão desses materiais.
O trabalho dos agentes na região continuou nos últimos dias,
mas a equipe sofreu baixas importantes. Responsáveis por coordenar a
megaoperação, dois diretores de fiscalização do órgão, Renê de Oliveira e Hugo
Loss, foram exonerados na última quinta-feira, dia 30. O chefe deles, o diretor
de Proteção Ambiental, Olivaldi Azevedo,já havia sido destituído no dia 14.
A interlocutores, os profissionais disseram que não houve
nenhuma determinação formal para interromper a fiscalização. Segundo eles, no
entanto, ficou claro que a forma de trabalho “não agradou” à cúpula do
Ministério do Meio Ambiente. Em 21 de abril, dezesseis analistas ambientais do
Ibama saíram em defesa dos companheiros, enviando um documento de protesto à
chefia do órgão ambiental.
Já o Ministério Público Federal abriu uma ação civil pública
para apurar se houve “improbidade administrativa e violação aos princípios da
moralidade e legalidade” na demissão de Olivaldi. O Ministério do Meio Ambiente
não justificou as demissões. Apesar de as ações no Pará estarem amparadas na
lei, o presidente Jair Bolsonaro é um crítico contumaz desse tipo de operação.
“Não é para queimar nada”, disse ele em abril do ano passado, criticando o
ocorrido em um caso semelhante. O presidente também é um ferrenho defensor da
exploração de minérios em áreas indígenas — desde fevereiro tramita no
Congresso um projeto de lei do Executivo que autoriza essas atividades.
Quase um consenso entre os especialistas, o enfraquecimento
da fiscalização por causa da Covid-19 pode levar a Amazônia a novos recordes de
desmatamento. “É preocupante, porque ainda estamos na época das chuvas. A
partir de maio a tendência é aumentar com as queimadas”, diz Carlos Souza
Junior, pesquisador do instituto Imazon.
No dia 23, a força-tarefa da Procuradoria na Amazônia moveu
um processo na Justiça para cobrar a ação imediata do governo para conter a
“destruição da floresta”. Diante dos alertas, a preocupação internacional com o
tema voltou a aparecer.
No dia 26, a consultoria global Eurasia alertou os
investidores para o fato de que a pandemia aceleraria o desmatamento. O assunto
ganhou destaque em jornais como o britânico The Guardian.
A volta das manchetes internacionais acusando o Brasil de
descaso com esse patrimônio ambiental é outra péssima notícia para a imagem do
país, cujo governo já vem sendo retratado no exterior como um dos líderes do
discurso negacionista em relação ao risco do coronavírus. O pior é que, em
ambas as situações, as críticas são pertinentes.