https://www.dw.com/pt-br -28/08/2022 23:27
Mudança climática ameaça drenar o planeta, crise hídrica global gera competição cada vez mais acirrada pelo recurso. Conflitos pelo uso da água já despontam entre Alpes e Mar do Norte – por enquanto sem uso de armas.
Uma pedra de 4.500 anos, oriunda da Mesopotâmia, hoje
Iraque, está exposta no Museu do Louvre de Paris. Nela estão gravadas cenas de
batalha entre os reis de Lagash e Umma, travadas em parte por causa da água.
Uma prova de que há muito ela é um recurso escasso, e frequente pomo da
discórdia.
Desde aquela época, seu valor multiplicou-se: atualmente há
8 bilhões de seres humanos na Terra, e todos precisam de água potável para
viver. Acima de tudo, porém, a agricultura e a indústria consomem volumes
gigantescos, ao mesmo tempo que as mudanças climáticas alteram o ritmo de
chuvas e secas.
Quando a Etiópia constrói uma barragem Nilo acima, o Sudão e
o Egito temem pela própria subsistência. O açude Ilisu, na Turquia, retém as
águas do rio Tigre, reduzindo a quantidade que chega ao Iraque. O Eufrates é
cortado por represas em diversas alturas.
Um estudo realizado em 2018 por encomenda da Comissão
Europeia identificou os grandes cursos d'água onde é especialmente elevado o
risco de conflitos pelo uso da água cada vez mais escassa: além dos citados
Nilo, Eufrates e Tigre, os rios Ganges, Brahmaputra, Indus e Colorado
apresentam esse perigo.
Alemanha seca
A Alemanha não consta do relatório da Comissão Europeia,
pois é considerada um país rico em recursos hídricos – até agora. Contudo, as
mudanças climáticas estão tornando os verões mais quentes e mais secos, mesmo
entre os Alpes e o Mar do Norte.
Em consequência, paisagens definham, áreas úmidas secam,
florestas queimam. Os rios deixam de funcionar como artérias de tráfego, por
não conterem mais volume suficiente à navegação. À medida que cai o nível da
água subterrânea, aumenta a apreensão quanto ao futuro.
Calor, seca, incêndios: florestas alemãs sofrem em
consequência da mudança climática/foto: Ralf Hettler/dpa/picture alliance
Um exemplo é a localidade de Leisel, nos limites da serra de
Hunsrück, oeste alemão. Sua população se revolta com duas companhias de água
mineral que querem perfurar poços no meio do parque natural Hunsrück-Hochwald,
a fim de aumentar sua produção.
Os moradores temem que seus próprios poços posam secar.
"A expansão da retirada de água no parque nacional é sequer permissível?",
questiona o hidrólogo Holger Schindler. Neste caso, as perfurações de teste
aparentemente são legais, tendo sido requeridas e aprovadas pouco antes da
criação do parque, em 2015.
Ao todo, Schindler tem observado um declínio da recarga da
água subterrânea, e conta com um agravamento dos conflitos regionais em torno
dos recursos hídricos, também na Alemanha.
Natureza e cidade em briga pela água
Conflitos motivados pela água ocupam cada vez mais os
tribunais da Alemanha. Na cidade de Lüneburg, no norte do país, por exemplo,
corre um litigio com a Hamburg Wasser. Há 20 anos ela abastece a segunda maior
cidade do país com água da área da Charneca de Lüneburg. Em 2019, a região
limitou o volume de extração por considerações ecológicas, porém agora a operadora
e está processando, pois quer expandir consideravelmente seus volumes.
É comum haver um descompasso entre as cidades e as áreas
circundantes, e a competição entre as necessidades dos centros urbanos e a
proteção da natureza é especialmente evidente em Heid, ao sul de Frankfurt, no
estado de Hesse.
Há décadas água tem sido bombeada de lá para a metrópole à
margem do rio Meno, resultando na queda do nível do lençol freático, com sérias
consequências para a floresta. Em 2013, aliás, um estudo da Universidade de
Göttingen já constatava que "as matas da área do Reno-Meno estão entre as
zonas de risco florestal da Europa Central". E uma das causas é a demanda
hídrica.
"Estamos falando de décadas de competição pela água
entre a cidade de Frankfurt e as cercanias", explica Dieter Borchardt,
pesquisador-chefe para recursos hídricos e meio ambiente do Centro de Pesquisa
Ambiental Helmholtz. Ele diagnostica um uso exagerado das reservas, ao ponto de
às vezes o solo ceder, causando "danos aos edifícios [de Frankfurt] e
sérias disputas sobre qual seria a razão".
Montadora de Elon Musk no leste alemão consome 1,4 milhão de metros cúbicos de água por ano – de 3 milhões calculados inicialmenteFoto: Patrick Pleul/Pool/REUTERS
Indústria entre consumidoras mais ávidas
A indústria tem se mostrado particularmente sedenta. A
espetacular "gigafábrica" da montadora automobilística Tesla, do
miliardário Elon Musk, em Grünheide, Brandemburgo, fez manchetes também por ter
sido construída no meio de uma região que já sofre escassez.
Além disso, a instalação se localiza numa zona de proteção
da água potável. E exige enormes quantidades, cerca de 1,4 milhão de
metros cúbicos por ano –um recuo considerável em comparação com os planos
originais de usar 3 milhões de metros cúbicos.
O recurso se tornou tão escasso na região, que a operadora
local começou a racionar: apesar de o consumo médio per capita é de 175 litros,
quem se muda para lá agora e recebe uma conexão nova só pode usar 105 litros
por dia.
Porém as companhias de energia estão entre as maiores
consumidoras: usinas elétricas evaporam água em suas torres de refrigeração; a
mineração de linhito bombeia enormes volumes.
A gigante alemã da energia RWE usa quase 500 milhões de
metros cúbicos por ano em suas minas abertas de linhito, sem ter que pagar
praticamente nada por isso. Como as autoridades costumam conceder direitos
sobre a água por prazos longos, às vezes décadas, muitos dos contratos em vigor
datam de épocas em que a mudança climática sequer fora registrada.
Usinas da operadora de energia RWE estão entre grandes consumidoras de água/ foto: Ulrich Zillmann/FotoMedienService/picture aliance
Na Ucrânia como na Mesopotâmia
Diante da escassez crescente, o Ministério do Meio Ambiente
alemão está elaborando uma Estratégia Nacional para a Água. Um esboço
apresentado em 2021 trata de programas a serem implementados entre 2030 e 2050.
O especialista Borchardt lembra que a gestão hídrica é uma
tarefa constante, frisando que o impacto total da mudança climática talvez não
seja aparente até depois de 2050. Portanto: "Temos que nos preparar agora
para isso." Do contrário, é provável que os conflitos sobre o recurso
sigam escalando – como ocorreu 4.500 anos atrás na Mesopotâmia.
A Cronologia do Conflito Hídrico, desenvolvida pelo Pacific
Institute de estudos sobre desenvolvimento, meio ambiente e segurança, mostra o
papel da água nas guerras. A entrada mais recente se refere à invasão da
Ucrânia: em fevereiro, as tropas de Moscou destruíram uma represa perto de
Kherson, que bloqueava o fluxo para a ucraniana península da Crimeia, anexada
pela Rússia em 2014.