cnn -17/09/2024 13:12
Em fevereiro de 2023, numa sala de convenções do resort de
luxo Villa Rossa, funcionários da gigante farmacêutica Mundipharma ergueram
suas taças de espumante e brindaram aos bons resultados de vendas no ano
anterior e aos 10 anos de atividade do laboratório no Brasil.
A celebração, que atravessou quatro dias no resort a 76 quilômetros de São Paulo, teve como ponto alto uma festa de carnaval com todos de abadá, e entrega de medalhas pelo empenho nas vendas de medicamentos à base de opioides, substâncias que, bem longe dali, foram protagonistas na morte de mais de meio milhão de americanos.
Uma pista do passado da empresa
estava nas paredes do salão, decoradas com cartazes da Mundipharma exibindo o
slogan “Construindo um futuro com precisão” — uma referência à autocrítica que
a empresa fez, de não terem sido precisos ao explicitar os riscos do uso da
oxicodona, princípio ativo de seu principal produto, e assim terem levado a uma
das mais mortais crises de saúde pública dos Estados Unidos.
A investigação jornalística Mundo da Dor, uma colaboração
do Metrópoles e mais 10 veículos, entre eles o site americano The
Examination e a revista alemã Der
Spiegel, revela, porém, que a expiação do slogan talvez esteja mais para
uma peça de marketing do que para uma mudança real de conduta da empresa.
Após cinco meses de apuração, a investigação mostrou que, tal qual nos Estados Unidos, a Mundipharma no Brasil repete táticas de venda usadas por lá na década de 1990 e no início dos anos 2000.
O laboratório segue afirmando que a oxicodona de liberação prolongada não causa dependência, embora a ciência diga o contrário. A empresa também minimiza o eventual risco de uma crise semelhante à americana acontecer no Brasil, o que é contestado por especialistas.
A
Mundipharma financia, assim como fez nos Estados Unidos, eventos sobre o
uso de opioides — em que médicos promovem essas substâncias a outros médicos —,
sob a justificativa de que visam à formação e educação para o uso dos
medicamentos. Nessas aulas, a farmacêutica detém o controle absoluto sobre o
que os médicos falam das substâncias e paga todas as despesas dos profissionais
convidados para participar dos eventos.
A Mundipharma é conhecida mundialmente por distribuir os remédios da Purdue Pharma, empresa americana que assumiu a culpa pela morte de mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos por overdose causada por opioides. Fundada pelos irmãos e médicos Arthur, Mortimer e Raymond Sackler, a Purdue Pharma é responsável por desenvolver o OxyContin, remédio composto pela substância oxicodona, que tem um efeito 150% maior que a morfina e possui alto risco de dependência.
O marketing e
a propagação do OxyContin para o tratamento de dor no fim da década de 1990 e
início dos anos 2000 levaram aproximadamente 90 mil
pessoas à morte só naqueles 10 anos, por overdose de opioides, segundo
dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano.
A Mundipharma desembarcou no Brasil em 2013, um ano antes de
a Purdue começar a ser alvo
de processos judiciais coletivos nos Estados Unidos pelas
consequências do uso do OxyContin. A entrada do OxyContin no mercado de
tratamento de dor no país era o principal objetivo da farmacêutica. Em março
daquele ano, a empresa deu entrada no processo
de regulamentação do medicamento na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e só conseguiu a aprovação três anos depois, em julho de
2016.
Remédios à base de oxicodona começaram a ser comercializados
no Brasil em 2001 pelo laboratório Zodiac. Entretanto, os primeiros dados que a
Anvisa tem sobre a venda de oxicodona são de 2014, quando foram comercializadas
149,8 mil caixas. Em 2016, ano em que o OxyContin, da Mundipharma, entrou para
o mercado brasileiro, o número saltou para 169,5 mil caixas vendidas, um
aumento de 13,5%. O crescimento aconteceu até 2017. No mesmo período, a
Mundipharma começou a vender outro opioide no Brasil: o Restiva, um adesivo que
tem como princípio ativo a buprenorfina e é considerado, atualmente, o
principal produto da farmacêutica no Brasil.