cnn -04/03/2024 16:36
A França deu o último passo, nesta segunda-feira (4), para
se tornar o primeiro país do mundo a prever o acesso ao aborto em sua
Constituição.
O Congresso francês, que reúne as duas casas do Parlamento
em Versalhes para votação quando há mudanças na Constituição, aprovou por ampla
maioria o projeto que constitucionaliza o aborto. Dos 852
deputados e senadores reunidos, 780 votaram a favor e 72 contra.
Após a promulgação pelo presidente francês, o que deve
acontecer na sexta-feira (8), Dia da Mulher, o artigo 34.º artigo da
Constituição francesa passará a prever a “liberdade garantida da mulher de
recorrer ao direito à interrupção voluntária da gravidez [IVG, sigla usada para
se referir ao aborto na França]”.
Raízes históricas por trás da mudança
A decisão, considerada histórica por movimentos feministas e
partidos de esquerda, é uma construção de séculos.
A defesa dos direitos femininos na França tem raízes
históricas. Já no século XV, a escritora Christine de Pizan defendeu o direito
das mulheres à educação. Três séculos depois, Olympe de Gouges criticou a
exclusão das mulheres da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” na
Revolução Francesa de 1789.
E em 1949, no livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir
estruturou as bases que definem o feminismo moderno ao discutir a opressão da
mulher em um mundo dominado pelo homem.
A França também é o país que, ainda no início do século
passado, separou a Igreja do Estado ao aprovar em 1905 a Lei da Laicidade,
afastando a religião das discussões políticas.
Esses são alguns dos fatores que explicam por que 86% dos
franceses apoiam a constitucionalização do aborto, como demonstrou uma pesquisa
do final de 2022 – taxa
bem superior à do Brasil, onde a aprovação ao aborto é de 39%.
Com o apoio massivo da população francesa, senadores
admitiram que votaram a favor do texto para evitar críticas. No último dia 28
de fevereiro, o Senado francês, de maioria direitista, aprovou
o projeto por ampla maioria, com 267 votos a favor e 50 contra.
Resposta à revogação do direito nos EUA
O aborto foi legalizado na França em 1975, com a aprovação
da lei proposta pela então ministra da Saúde Simone Veil, ícone da emancipação
feminina e sobrevivente do Holocausto. Para ser aprovado à época, o projeto se
centrava na saúde pública e não nos direitos das mulheres de dispor sobre os
seus corpos.
Desde então, a “Lei Veil”, inicialmente bastante restritiva,
passou por várias mudanças. A mais recente, em 2022, passou a permitir abortos
até a 14ª semana de gravidez, financiados pelo sistema de seguridade social,
sem necessidade de justificativas.
As mudanças levaram a França a ser considerada um dos países
que mais apoiam o acesso ao aborto no mundo. Desde 2001, uma em cada quatro
grávidas interrompem a gestação por aborto na França, de acordo com um
relatório parlamentar de 2020.
Mas o gatilho para incluir o acesso ao aborto na
Constituição na França veio após a
decisão do Suprema Corte dos Estados Unidos de revogar o direito federal ao
aborto, em junho de 2022. E também após o retrocesso dos direitos ao aborto
em países como a Hungria e a Polônia.
A experiência de outros países levou a discussão da
constitucionalização do aborto a sair dos círculos feministas. Políticos
progressistas passaram a defender que o acesso ao aborto fosse incluído na
Carta Magna para blindar o tema de eventuais tentativas de revisão também na
França, sobretudo diante do avanço da extrema-direita no país.
Na sequência da decisão da Suprema Corte americana, seis
projetos de lei para constitucionalizar o direito ao aborto foram apresentadas
no Parlamento francês.
Liberdade x direito
O projeto de Mathilde Panot, presidente do La France
Insoumise (LFI), foi o que avançou entre eles e foi aprovado na Assembleia
Nacional em novembro de 2022. Mas o texto foi alterado no Senado em fevereiro
de 2023, por iniciativa de partidos de direita, que substituíram o termo
“direito” por “liberdade” da mulher de interromper a gravidez.
Movimentos feministas criticam a expressão, argumentando que
a propriedade sobre o corpo deveria ser um direito, não uma liberdade. Também
afirmam que a liberdade é a capacidade de fazer algo, enquanto o direito é a
garantia de que se a mulher desejar, terá meios para interromper a gravidez.
Portanto, o termo liberdade permitiria mais facilmente a um governo restringir
as condições de acesso ao aborto.
Para seguir adiante, o projeto de Mathilde Panot precisaria
ser aprovado novamente na Assembleia sem alterações, além de passar por um
referendo, por ser uma iniciativa do Parlamento e não do governo.
A perspectiva de um referendo, que poderia ser arriscado,
levou o governo de Emmanuel Macron a elaborar seu próprio texto, pressionado
por movimentos feministas. Dois dias depois da aprovação do projeto de Panot no
Senado, o governo chegou ao texto atual com o termo “liberdade garantida”. Uma
expressão próxima da formulação do Senado, mas mais vinculativa em termos
legais.
Mas imerso em crises políticas, provocadas pela Reforma da
Previdência, apenas em outubro do ano passado o governo enviou o texto ao
Parlamento.
O projeto foi aprovado então pela Assembleia Nacional em
janeiro, por 493 votos e 30 contra. E no dia 18 de fevereiro Senado.
Liberdade não tão garantida
Em seu discurso no Congresso em Versalhes, nesta
segunda-feira (4), o primeiro-ministro francês Gabriel Attal citou a aprovação
do projeto como um “passo fundamental” que “ficará na história”. Mas ele mesmo
ponderou que a constitucionalização não é um ponto final. “Ainda estamos longe
de estar no fim do caminho, mas passo a passo a igualdade está cada vez mais
próxima ”, disse Attal.
Movimentos feministas e políticos da oposição afirmam que em
uma sociedade que aprova o aborto, o governo busca colher os dividendos do
projeto, mas apontam retrocessos práticos sobre o direito das mulheres à
interrupção da gravidez.
De acordo com o “Movimento Francês para o Planejamento
Familiar”, 130 clínicas de aborto foram fechadas em 15 anos, o que leva
mulheres a fazer longas viagens para realizar o procedimento, dificultando o
acesso.