Blog da Cidadania -02/12/2019 12:11
Uma lei de autoria do líder do governo na Assembleia
Legislativa de São Paulo (Alesp), deputado Carlão Pignatari (PSDB), beneficiou
uma empresa da qual ele é acionista e prejudicou um laboratório público
estadual que integra o Hospital das Clínicas (HC). Com uma mudança na Política
Estadual de Medicamentos, a lei praticamente impediu o governo de vender um
sofisticado produto hospitalar para entidades filantrópicas, e assim eliminou o
principal concorrente da companhia da qual o deputado é investidor.
De acordo com sua declaração de renda, Carlão tem R$ 625,6
mil em ações da Indústria Brasileira de Farmoquímicos (IBF), com sede em São
José do Rio Preto (SP). Em 2011, ele chegou a presidir uma assembleia-geral de
constituição da empresa, com presença de todos os acionistas fundadores.
A IBF é um dos três laboratórios paulistas com registro na
Anvisa para fabricar o produto FDG (18 F), essencial para o exame PET-CT –
tomografia usada no diagnóstico de câncer. Hoje, no entanto, o mercado desse
insumo no Estado é disputado apenas pela IBF e pela Cyclobras, de Campinas. A
mudança na legislação barrou as vendas do FDG pelo Instituto de Radiologia
(InRad) do HC, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP). Com produção própria, o instituto comercializava sobras que não eram
usadas internamente no hospital. A receita das vendas bancava a produção e uma
série de pesquisas científicas em medicina nuclear.
“Para fazer uma ou 100 doses, é o mesmo custo”, diz o
diretor executivo do InRad, Marco Bego. “Não tinha nenhum custo para a rede
pública, nem para o HC. Era uma das poucas áreas do HC que só dependiam da sua
operação.” O InRad vendia o insumo para 12 hospitais filantrópicos da capital –
entre eles as principais instituições da cidade, como o Albert Einstein, o
Sírio-Libanês e o Oswaldo Cruz. A venda para entidades particulares era feita
por meio da Fundação para o Remédio Popular (Furp), ligada à Secretaria
Estadual de Saúde. Essa possibilidade estava prevista na Política Estadual de
Medicamentos.
A lei proposta por Carlão restringiu a venda do governo para
entidades filantrópicas apenas “para uso exclusivo no diagnóstico ou tratamento
de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde”. Na prática, os hospitais
não conseguem separar o produto só para pacientes do SUS. Cada frasco de FDG,
que dura poucas horas de exame, é usado diretamente nos equipamentos que fazem
a tomografia, e ali são atendidos tanto pacientes do sistema público quanto
clientes de planos particulares. Isso resultou na suspensão das compras de
todos os hospitais conveniados com o InRad.
O corte de receitas levou o HC a cogitar o fechamento do
centro de pesquisas, que teve investimento público de R$ 7,7 milhões para sua
construção há cerca de dez anos. Até a alteração, o laboratório não precisava
de aporte do governo. A receita do InRad com a venda das sobras do FDG era
estimada em R$ 700 mil por mês, o suficiente para cobrir os custos da equipe e
da manutenção e investir em pesquisas.
Suspensão. A Cyclobras, única concorrente da IBF após a
edição da lei, chegou a ter a venda do produto suspensa em outubro pela
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que regula a produção de produtos
radiofármacos no País. Durante seis dias, enquanto durou a suspensão, a IBF se
tornou a única fornecedora do insumo em todo o Estado de São Paulo. Procurada
pela reportagem, a CNEN não respondeu sobre os motivos para a suspensão.
Ao Estado, a secretaria de Saúde disse que não identificou
nenhuma outra consequência da lei para a rede pública. Os prejuízos ficaram
restritos ao HC.
Ao longo deste ano, Carlão compareceu a várias sessões da
Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a Furp na Alesp, apesar de não
ser membro efetivo da CPI. O governador João Doria (PSDB) já declarou que tem a
intenção de repassar as fábricas da fundação para a iniciativa privada.
Após tramitar como projeto de lei, a proposta do deputado
foi vetada em 2017 pelo então governador Geraldo Alckmin. O governo alegava que
a medida era inconstitucional, pois criaria desigualdade no acesso aos
medicamentos, e que a política do SUS “é regida pelo princípio da
universalidade, que garante pleno acesso aos serviços de saúde estatais, não
sendo lícito fazer qualquer tipo de distinção entre seus usuários”.
O texto tramitou por mais de um ano e meio na Alesp até o
veto ser derrubado. O projeto foi incluído em um pacote votado em sessão
extraordinária, em dezembro de 2018, na chamada “janela do fim de ano”.
Fontes de hospitais particulares estimam que, desde então, o
preço do FDG já subiu cerca de 15%. O produto custa cerca de R$ 700 por exame.
Considerados apenas os principais hospitais filantrópicos da capital, há uma
demanda de ao menos mil exames PET-CT ao mês.
Para esses hospitais, não só o custo do produto ficou mais
elevado como é necessário comprar em maior quantidade dos laboratórios IBF e
Cyclobras, localizados no interior paulista. Isso porque o FDG, como qualquer
produto de medicina nuclear, é altamente perecível. A substância perde metade
da sua radiação em cerca de duas horas – é a chamada “meia vida”. O InRad tinha
a vantagem de estar localizado na capital, onde há a maior concentração de
exames PET-CT no País, e a poucos quilômetros dos principais hospitais
paulistanos.
O FDG é fabricado com um acelerador de partículas, chamado
cíclotron, próprio para a produção de insumos da medicina nuclear. Desde que a
lei impediu a venda, o InRad tem de se manter com o dinheiro do faturamento em
anos anteriores. As reservas devem durar até fevereiro. “Ou a gente fecha o
cíclotron e começa a comprar FDG para o HC e para as pesquisas em andamento, ou
a gente arranja alguma forma de voltar à operação original, autossustentável”,
disse Marco Bego, da Inrad.
Para deputado, lei não afeta instituto do HC
Procurado, o deputado Carlão Pignatari (PSDB) não quis comentar sobre o fato de
ser acionista da IBF. Por meio de nota, limitou-se a dizer que “a lei em
questão não proíbe o Instituto de Radiologia de vender 18F-FDG aos hospitais
filantrópicos de SP, como o Einstein, Sírio-Libanês e HCor; sequer trata dos
negócios do InRad (do HC)”.
O deputado afirmou ainda que “tratar a questão dessa forma
confunde os leitores do jornal com uma informação inverídica e tendenciosa. Nem
mesmo a Furp produz o 18F-FDG.” “A medida legislativa foi estabelecer que um
órgão público como a Furp deve se dedicar, prioritariamente, ou mesmo,
exclusivamente, à saúde pública, aos pacientes do SUS, principalmente àqueles
que não têm recursos para pagar do próprio bolso ou convênios médicos”, disse
Carlão.